A chance de consertar o passado

    Era mais uma tarde gelada de inverno. O cinza predominava na paisagem da cidade... Prédios... Ruas... Calçadas... Céu... Para onde se olhava tudo parecia cinza. O sol não mostrava seus encantos há mais de uma semana. Os mais recentes dias estavam se dividindo entre uns momentos de chuva torrencial e outros de névoa e garoa.
    Ana precisou de bastante coragem para sair de casa. Mas decidiu que já estava na hora de seguir em frente... O casamento, de mais de cinco anos, havia terminado. E, segundo Carlos, não existia chance de reconciliação... "Não a amo mais".
    Ana precisava fazer compras. A geladeira estava vazia... Jiló, cachorro que lhe coube como patrimônio no final do relacionamento, já não tinha mais ração. E, além da falta de suprimentos, em nada melhoraria seu estado de espírito se ficasse trancada em casa nos seus merecidos quinze dias de férias.
    Ana caminhou pelo centro da cidade... Passaria despercebida não fosse pelo cachecol, de um vermelho bastante vivo, que usava para aquecer o pescoço. Era uma mulher de estatura mediana. Cabelos castanhos cortados na altura dos ombros. Vestia, naquele dia, uma elegante, porém discreta, capa preta.
    Ana decidiu que, antes de fazer compras, passaria na confeitaria. Seu organismo, constatou, ansiava por uma xícara de café. Pensou que também merecia uma fatia de torta de nozes - sua preferida. Na confeitaria Ana se acomodou em uma mesa bem afastada do restante dos clientes. Queria evitar os olhares de pena que conhecidos de longa data lhe direcionavam sempre que aparecia em público.   
    Perdida em pensamentos, na confeitaria, Ana demorou a enxergar o homem que se aproximava. Parecia que já o havia visto... Não conseguia recordar, contudo, quem era. Depois de um pequeno esforço de memória associou o belo homem, que caminhava em sua direção com um caloroso sorriso, ao jovem e magricela Felipe (por quem havia nutrido uma paixão nos tempos de escola).
    Ana cumprimentou Felipe com um fraterno abraço. Convidou-o para fazer-lhe companhia. A conversa fluiu de forma agradável. Por alguns minutos Ana esqueceu as recentes atribulações de sua vida. Parecia que tinha voltado no tempo... Que era uma menininha cheia de sonhos e apaixonada pelo colega de classe...
    Ana soube que Felipe, após dez anos de estudos no exterior, tinha aberto uma empresa de arquitetura na cidade. "Já temos, meu sócio e eu, alguns clientes importantes. Os negócios estão indo bem. Faz quase um ano que voltei. Pena não termos nos encontrado antes."
    Quando estava se preparando para sair Ana foi surpreendida por um convite de Felipe... "Foi um grande prazer conversar com você. Gostaria de saber se aceita jantar comigo no próximo sábado?" Ana estava inclinada a recusar... Ainda não transcorrera sequer um mês desde a desagradável separação... Pensou, contudo, que se a vida lhe acenava com uma chance de, pelo menos firmar uma boa amizade, era preciso aceitar... Afinal: é possível encontrar cor mesmo nos dias mais cinzentos e tristes... Basta estar com o coração aberto. E, evidentemente, saber enxergar os sinais... Felipe, estava convicta, era um irresistível sinal.
    CINZA
    Recebi, semana passada, sugestão do amigo paulista Eduardo Pimentel Santos para escrever sobre Caio Fernando Abreu... Aceitei o desafio... Confesso, no entanto, que fiquei bastante apreensiva... Só que, depois de aceitar um desafio, nada me impede de cumpri-lo. E da melhor forma possível... Escrevi a crônica acima inspirada em textos de Caio Fernando Abreu... Talvez, por este motivo, a história se passe em uma tarde gelada de inverno...
    O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu morreu, precocemente, aos 47 anos. Seu legado, contudo, permanece bem vivo... São centenas de obras (romances, crônicas, poesias...) que ficaram à disposição dos apaixonados por leitura.  
    Caio Fernando Abreu, segundo alguns de seus admiradores, optou por retratar o viver de um modo cinzento e triste... Abordou, com maestria, a inquietante busca da felicidade que move o ser humano. Viveu entre picos... Alguns de grande angústia... Outros de felicidade extrema. Estas oscilações  temperamentais podem ser identificadas em seus escritos. Selecionei, para fechar o texto, trecho de um de seus contos: Fragmentos disso que chamamos de “minha vida"...
    "Há alguns anos. Deus - ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus-, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. (...)
    Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer - eu já estava lá dentro. (...) De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
    Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. (...)
    Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. (...)
     Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania." (ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006) (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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