Sarah para todo o sempre

    Júlio José vive nos Alpes Julianos. Está com 84 anos mas ainda exerce grande fascínio. Por onde passa chama atenção. Olhos cor de amêndoa e pele levemente dourada - toque especial que lhe foi legado pela mãe cigana. Do pai, um espanhol de sorriso largo, herdou os cabelos cacheados e a paixão pela música.
   O madrilenho Júlio José não tem parentes próximos. Optou, três décadas atrás, depois de encerrar sua bem-sucedida carreira de cantor, por morar sozinho. Escolheu os Alpes Julianos para fixar residência porque achou "bastante poético morar em um local com nome similar ao seu"...
    Júlio José distribui sorrisos por onde passa. É carismático e bastante atencioso. "Irradia felicidade" - costumam dizer as pessoas de seu convívio. Mas o sorriso, sempre presente, não é sinal de plena felicidade. Júlio José carrega, em seu coração, a ausência de um grande amor...
    Sessenta anos antes...
    A jovem Sarah estava ansiosa... Assistiria, pela primeira vez, uma apresentação de Júlio José. Não podia acreditar que um renomado cantor, que lotava estádios de grandes cidades, se apresentasse um dia na sua pequena Vila de Rei. O show seria ao ar livre... Um final de tarde, de um dia de primavera, com música e flores. Nada poderia ser mais perfeito.
    Júlio José ainda não entendia os motivos que o tinham levado a aceitar fazer aquela apresentação... Não apreciava a vida em pequenas cidades. Considerava os grandes centros urbanos, dotados de enorme universo de opções de lazer/contatos pessoais, bem mais interessantes. Gostava de viver rodeado de pessoas. Os amigos mais próximos diziam que seu magnetismo atraía multidões - já que deixava a desejar em termos de voz para a arte musical. Ele acreditava... Sabia que sua voz não era das mais melodiosas. Mas tinha bom nível de autoconfiança e isso lhe bastava.
    Sarah chegou com antecedência, acompanhada, ao local da apresentação. Como era uma moça de estatura baixa (no máximo um metro e sessenta e dois centímetros) queria se posicionar em frente ao palco. Estava na companhia de seu noivo Miguel - um importante comerciante da Cidade do Porto - e de algumas amigas. Nem podia imaginar naquele momento que, dentro de alguns meses, deixaria sua amada Vila de Rei... Gostava de sua casa... Da companhia da família... Das longas conversas com as amigas. "Mas será um bom casamento" - haviam lhe garantido os pais.
    Júlio José subiu ao palco pontualmente às 17 horas. E, pela primeira vez, ficou sem ação. Avistou, bem na frente da pequena platéia, um ser angelical. A moça, aparentemente frágil, tinha cabelos negros e pele muito clara. Usava um vestido branco. E, como adorno, somente uma flor vermelha presa nos sedosos cabelos. Depois de alguns minutos de hesitação Júlio José conseguiu cantar. Tinha, porém, uma certeza... Nesta noite todas as suas canções seriam direcionadas para a belíssima jovem de cabelos negros.
    Sarah não conseguia conter a emoção. Parecia que Júlio José lhe dedicava todas as canções. Deixou as lágrimas correrem livremente pelo rosto. Nunca havia chorado em público. Mas acreditava ter uma explicação... O romantismo das canções e a proximidade do casamento estavam mexendo com seus sentimentos.
    Uma boa inquietação
    Depois da apresentação Júlio José se recolheu. Não estava com ânimo para conversas ou atividades outras. Os seus pensamentos se fixavam, teimosamente, na moça angelical que avistara durante o espetáculo... Precisava descobrir quem era... E então ficou feliz por estar em uma pequena cidade. Saiu do quarto e foi em busca de respostas... Puxou conversa com o proprietário da pousada. Descobriu que seu anjo se chamava Sarah. Gostou do nome. Um ser tão lindo tinha que se chamar Sarah. No entanto, para sua tristeza, recebeu a notícia de que a moça estava de casamento marcado com um influente comerciante da Cidade do Porto.
    Sarah não dormiu direito naquela noite. Os pensamentos a inquietavam. Todos direcionados ao fascinante Júlio José. Pela primeira vez, em dezessete anos de vida, seu coração parecia querer pular para fora do peito. Pensar naquele recém-conhecido lhe causava uma indescritível emoção. Nunca havia sentido algo semelhante. Miguel, o noivo rico da Cidade do Porto, lhe despertava carinho e amizade. Sabia, no entanto, que o amor era um sentimento bem mais profundo. E sempre desejou o verdadeiro amor...
    Júlio José e Sarah se encontraram, de forma surpreendente e inesperada, no dia seguinte. Caminhavam, absortos em pensamentos, pelas ruas da cidade, quando se chocaram. Do choque surgiu uma queda. E quis o destino que esse pequeno "acidente" lhes oportunizasse uma longa conversa. Nascia ali um grande amor. Mas Sarah estava de casamento marcado...
    Miguel voltou, no dia seguinte, para a Cidade do Porto. Júlio José decidiu, ao mesmo tempo, que merecia uma semana de descanso... Uma semana cercado por natureza e pessoas gentis... E o mais importante: uma semana para criar coragem e revelar seus sentimentos para Sarah.
    Sarah, antes afeiçoada ao sossego do quarto, passou a ocupar horas de seus dias fora de casa... Passeava, sem pressa, pelas ruas da cidade... Precisava rever Júlio José. Conversar com ele. Conversar muitas vezes. Muitas vezes mesmo. Não tinha um tema específico para essas conversas. O desejo, contudo, era cada vez mais irresistível. Talvez não tivesse chance de lhe falar. Só que estava convicta da necessidade de conhecer, de maneira profunda, aquele homem que considerava um semideus.
    Três dias antes de voltar para Madrid a oportunidade que Júlio José tanto esperava surgiu. Ele encontrou Sarah em um jardim. A mais linda flor em meio a tantas outras. Mas, para revelar seus sentimentos, precisava ocupar espaço na bonita paisagem - "que merecia ser transformada em quadros pelos mais renomados pintores"... Júlio José pediu licença e se aproximou. Resolveu que, para evitar a perda de coragem, precisava falar, de maneira direta, o que se passava em seu coração.
    Sarah sentiu a sua aproximação. Esperou, com o coração saltitante, um chamado para olhar na direção que imaginava ele estar caminhando. O coração batia insistentemente... As pernas tremiam... As mãos suavam... Jamais experimentara sensação tão agradável e, ao mesmo tempo, assustadora. Essa tensão foi, aos poucos, se aliviando. Quando Júlio José falou que a amava não conseguiu se conter. As lágrimas começaram a correr pelo rosto. Era tudo o que desejava ouvir. Porém: algo de muito relevante atrapalhava a plena felicidade. Estava para se casar em poucos meses. Tinha, contudo, uma certeza... Seu coração sempre seria de Júlio José.
    Júlio José desejava, do fundo do coração, ouvir que Sarah relegaria compromissos assumidos para viver ao seu lado. No entanto: Sarah declarou que, mesmo o amando, não poderia desfazer o noivado. Seus pais não aceitariam. Garantiu que lhe dedicaria amor eterno e viveria com a doce lembrança daquela primavera de flores e música.
    Sarah voltou para casa com o coração em pedaços. Sabia que havia magoado Júlio José. E, principalmente, tinha certeza de que jamais se perdoaria por tê-lo deixado partir. Entretanto: "na vida não se pode ter tudo o que se deseja"... Ela tinha muito - casa, família, amigos, saúde... E isso devia lhe bastar.
    Sarah casou-se com Miguel - como os pais haviam planejado. Um casamento sem amor mas repleto de carinho. Não podia dizer que era infeliz. Contudo: imperava o pensamento de como seriam seus dias se tivesse tomado a decisão de assumir o amor que havia cultivado tão fortemente pelo cantor.
    Júlio José seguiu cantando e encantando multidões. Não obstante, desde aquela primavera em Vila de Rei, todas as canções que escreveu eram dedicadas a Sarah. Esteve com outras mulheres. A alma e o coração, mesmo assim, sempre se mantiveram de forma fixa na imagem da sua doce Sarah.
    Presente do destino 
    O tempo foi passando... Por vezes rápido demais... Por vezes lentamente. Quase vinte anos já haviam transcorrido desde o primeiro encontro entre Júlio José e Sarah... O cantor, mais famoso do que algum dia ousara pensar, estava comprometido a fazer uma apresentação na Cidade do Porto. Tinha evitado, por duas décadas, cantar naquela cidade. Desta vez não houve jeito... O espetáculo precisava ser feito. 
    Sarah, sem filhos e prematuramente viúva, foi uma das primeiras a chegar para ver Júlio José cantar. Tinha esse direito. Por vinte anos esperou por aquele momento. Seu coração ansiava vê-lo de perto pelo menos mais uma vez. Chegou cedo para a apresentação porque, afinal, era uma mulher de pouca estatura. Queria garantir um lugar bem na frente da platéia...
    Júlio José subiu ao palco pontualmente às 21 horas. E, pela segunda vez na vida, ficou sem ação. Seus olhos resolveram pregar-lhe uma peça ou Sarah estava entre as milhares de pessoas que aguardavam, ansiosas, o início da apresentação? Depois de alguns minutos de hesitação conseguiu cantar. E, como tinha feito vinte anos atrás, deu um espetáculo para Sarah. Desta vez, evidentemente, não recorreu ao imaginário. Ela estava ali bem à sua frente. Desacompanhada. Cantou com a alma e com o coração... Foi, na sua própria avaliação, uma apresentação memorável. A melhor de sua vida. 
    Sarah deu liberdade às lágrimas que havia retido em seu peito nos mais recentes vinte anos. Sabia que Júlio José a vira... Sabia que cantava para ela... E como ele estava lindo!!! Jamais pensou que o encontraria depois de tê-lo deixado partir, tantos anos antes, com o coração em pedaços. Mas ele estava ali. Seu amado Júlio José tão perto e, ao mesmo tempo, inspirando dúvidas incontáveis. Como seria um possível novo encontro? No final da apresentação, quando já se despedia do público, Sarah ouviu alguém gritar seu nome... Júlio José, de cima do palco, rogava que fosse ao seu encontro. Loucura? Nem que fosse... Auxiliada por um segurança ela conseguiu chegar ao seu amado.
    Júlio José e Sarah passaram a noite conversando. Ele descobriu que ela estava viúva. Ela soube que ele jamais se casara. Quando faltaram palavras se beijaram. E saiba que faltaram palavras durante longo tempo. Beijos de amor... De paixão... De saudade. Um fogo incontrolável de amor que só se aplacou ao amanhecer. Naquela noite puderam, finalmente, se entregar de corpo e alma. O amor verdadeiro, tiveram certeza, havia resistido ao tempo... Ultrapassado adversidades... Não se guardou rancor... Permaneceu inabalável.
    Durante dez anos Júlio José e Sarah viveram a plena felicidade. Sarah vendeu as propriedades que herdara de Miguel. Resolveu que acompanharia Júlio José, onde quer que fosse, até o final de suas vidas. Júlio José, motivado pelo amor, criou as mais belas canções... Vendeu milhares de discos... Ganhou centenas de prêmios. A vida, afinal, estava do jeito que sempre sonhara. Queria envelhecer ao lado de sua amada. Mas Deus tinha outros planos...
    Quando Sarah completou quarenta e sete anos Deus resolveu que queria tê-la ao seu lado. Júlio José obrigou-se a conformar-se mais uma vez. Sarah, decidira o destino, voltara a colocá-lo na mais dolorosa solidão. Sua dor se aliviava, às vezes, frente à convicção de que Deus só leva tão cedo quem lhe é essencial. 
    Movido por este raciocínio alentador conseguiu manter-se vivo. Às vezes, envolto pela inevitável névoa da saudade, sentia remorso de continuar vivendo. Parecia egoísmo ter o coração batendo quando o de Sarah havia parado trinta anos atrás. 
    Desde que Sarah se foi Júlio José entendeu ser hora de parar de cantar. Fez um pacto consigo mesmo: somente cantaria de novo quando pudesse estar na presença da sua amada. Júlio José segue esperando... Espera o dia em que reencontrará Sarah para todo o sempre. Espera o dia em que, mais uma vez, lhe dedicará as suas melhores canções. Se a voz não é das melhores. Bem... Sarah nunca reclamou. (Para Sarah Grunwadl - pela gentil sugestão que originou esta história - Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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