Táxi filosófico

    Depois de longa viagem aérea desembarquei em Curitiba e, logo, tratei de pegar um táxi para chegar ao hotel. Não foi difícil. O serviço de táxi naquela capital é amplo e eficiente.
    - São 21 horas. Em quanto tempo você acha que chagamos ao hotel? – perguntei ao motorista.
   - Em quinze minutos a senhora estará acomodada nessa hospedagem. Pode ficar tranquila. Curitiba é uma cidade agradável. Levará daqui coisas boas para recordar.
   - Obrigada! Você não parece ser um taxista. Tem um bom vocabulário e gestos de quem carrega uma enorme bagagem cultural. 
   - Agora eu que agradeço. Muito obrigado. Mas gostaria de saber o que a faz crer que posso ser algo mais do que um motorista de táxi.
   - Não sei bem como explicar. Você, contudo, tem algo de sofisticado. Acredito que o contato com uma diversidade enorme de pessoas o faz mais experiente do que aqueles que atuam entre quatro paredes. Posso estar errada. Mesmo assim arrisco a dizer que toda pessoa que entra no seu táxi sai um pouco maior. Mais sábia. Mais generosa. Mais humana. Mais ciente de direitos e deveres.
   - Poxa! Hoje é mesmo o meu dia. Uma análise desse padrão é coisa rara. Eu prefiro dizer que especial é a senhora que consegue ver em mim alguma coisa além de um operário do transporte. 
   - Como estou cansada e preciso organizar minhas ideias para os compromissos de amanhã eu prefiro ficar calada. Mas seria extremamente agradável ouvir aquilo que você quiser falar.
   - A senhora é quem manda. A minha experiência dá luz à convicção de que atua na área educacional. É jornalista. É professora. É historiadora. Eu acho que a senhora é ligada a uma dessas áreas. Tem ares de que conhece tudo. Vou tagarelar a seu pedido. Nunca nego o que um cliente me pede.
   O taxista João Pedro não tinha mais do que quarenta anos. Entretanto era privilegiado por uma indisfarçável bagagem de conhecimento. E eu, mesmo cansada, me divertia com tudo o que saía da sua boca.
   - Meu pai foi taxista por mais de trinta anos nesta cidade. Eu sou o seu único filho. Ele ainda vive. Está com sessenta e seis anos. A minha mãe tem sessenta anos. É um casal muito unido e isso me faz feliz. Eu sigo a profissão do meu pai por pura opção. Cheguei a cursar três anos da faculdade de direito. Parei porque, com base nas lições filosóficas do meu pai, como advogado eu jamais poderia ser tão verdadeiro quanto um taxista. “Filho... Nessa profissão, para ser competente, você terá que dizer e fazer, muitas vezes, aquilo que não acredita. Você vai ganhar bastante dinheiro. Mas esse dinheiro mesmo um dia poderá lhe pesar de forma exagerada na consciência.”
   - Então você é um taxista do direito. Ou um direito taxista?
   - Minha cara professora... Você não quis mas disse tudo... Direito. Esta é a palavra chave. Eu quero fazer tudo direito. Como taxista, homem de família ou representante dessa sociedade formal que é obrigada a existir.
   - Me fale mais dessa sociedade formal!
   - Perdoe-me a ousadia. Só que eu fico pensando... E é justamente por isso que abandonei a faculdade... Por que se aprofundar na aprendizagem de química se um dia vou ser comerciante? Por que se aprofundar na aprendizagem de física se um dia vou ser administrador de empresa? Por que se aprofundar na aprendizagem de história se um dia vou ser profissional do transporte? 
   - Então você ficou entre o direito e o transporte. A sua opção não seria consequência do fato de ser muito mais fácil conduzir um automóvel do que defender as razões de sua clientela na esfera judicial? 
   - Perdoe-me professora! Eu sou um taxista por opção. Por legado e opção. Meu pai nunca precisou de milionário patrimônio para fazer a sua família feliz. Eu sigo o exemplo dele. Tenho uma mulher que me ama e dois filhos que me admiram. Esta é a minha fortuna. Digamos: a realização plena que projeto desde os primeiros anos de vida. 
   - Eu estava precisando deste tipo de conversa. Vinha, no avião, me questionando. Esta vida, que me manda para todos os lados, de que forma me contemplará? Estou a caminho da felicidade? Estou a caminho da justiça? Estou a caminho da satisfação daqueles que me são caros? A vida passa tão apressadamente que é muito comum a gente pecar sem desejo. É muito comum errar na busca ferrenha do acerto. As vezes somos condenados no andar do melhor das nossas intenções. 
   Legado
   João Pedro parece não ter pressa de chegar ao hotel onde eu vou ser hospedada. Dá a impressão de que tem uma sede enorme de conversar. Sobre a família ele fala maravilhas. A mulher Eulália é o amor de sua vida. Os filhos Ricardo e Talita são a esperança de uma vivência melhor do que a que experimentou. Não que sua vida deixe a desejar. Para os filhos, contudo, a vontade é de que tudo seja ainda melhor.
   - Eu gostaria que esta nossa conversa pudesse continuar por muitos dias. Sei, no entanto, que a senhora tem compromissos inadiáveis e nem disporia de razões para ouvir um taxista que nem sequer teve coragem de concluir a faculdade de direito. Estamos diante do seu hotel. Vou desembarcar a sua bagagem. Gostaria que me fizesse uma avaliação do quanto lhe chateei do aeroporto até aqui.
   - Meu caro João Pedro... Você é uma grata realidade neste meu desembarque em Curitiba. Como educadora obrigo-me a dizer-lhe que em quinze minutos de conversa senti um acréscimo enorme no meu saber. Você é um bom taxista... Você é um homem bem informado... Você é um cidadão brasileiro de primeira linha... Você é luz.
   João Pedro levou minha bagagem até a portaria do hotel e, antes de embarcar no seu automóvel, me disse timidamente:
   - Professora... Fiz, hoje, o melhor serviço de táxi da minha vida. Aprendi mesmo você não pretendendo me ensinar. Percebo que, também não querendo ensinar, consegui acrescentar alguma coisa em sua enorme bagagem de saber. Estou feliz. Volto para o aeroporto. Se quiser... Sim... Se você quiser... Professora... Se você quiser me procure. Lá vou estar aberto ao aprender e, se não considerar ousadia, ao ensinar. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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