As artimanhas do coração - parte 3

    Eugênia saiu do mercado carregando várias sacolas. Afinal: por mais de uma semana não se preocupara em fazer compras. A geladeira estava vazia... Menos perceptível aos olhos, mas bastante avassaladora, é a solidão que lhe aperta o peito desde que Leopoldo partiu.
    Absorta em pesamentos Eugênia não percebeu a bicicleta se aproximando. Só se deu conta do perigo quando sofreu a batida que a fez ficar estendida no asfalto... A dor, no braço esquerdo, apesar de não ser algo assustador, estava longe de merecer a classificação de confortável... Doía e, isso, por Eugênia não era esperado. Para piorar a situação suas compras estavam espalhadas pela ciclovia.
    Francisco pedalava, como fazia todos os dias, rumo à padaria. Adorava a sensação de liberdade que a bicicleta lhe dava... O vento a bagunçar os cabelos... Aproveitava esses momentos para pensar em suas criações. Estava sempre em busca de algo novo. Seus olhos, invariavelmente atentos, captavam os detalhes da paisagem: pessoas conversando, crianças brincando, árvores, animais, flores... Tudo emoldurado por um céu azul ou, por força de nuvens espessas, tingido de cinza... Nada lhe passava despercebido. Só não viu aquela mulher que, saindo do nada, atravessou seu caminho. Não teve tempo de desviar. A bicicleta atingiu, em cheio, a desatenta pedestre.
    - A senhora está bem? - quis saber Francisco. Como não obteve resposta ficou sobremaneira preocupado. Mesmo assim passou a juntar frutas, verduras e outras mercadorias que, face ao pequeno acidente, estavam espalhadas pelo chão... Inquieto, com justa razão, continuou tagarelando: "Senhora... Peço que me perdoe. Não tive a intenção de atropelá-la. É que a madame surgiu, de repente, de trás do contêiner. Não pude frear em tempo. Desculpe-me."
    Eugênia, esfregando o braço esquerdo, nem chegou a ouvir o que o ciclista falava... Seus pensamentos estavam em uma época diferente... Tempos de despreocupada felicidade... 

    Trinta e cinco anos antes...
     Leopoldo e Eugênia, logo após o casamento, fixaram residência na capital. Deixaram a tradicional lua-de-mel para uma outra oportunidade. Leopoldo, além dos estudos, tinha uma infinidade de pacientes que precisavam da sua atenção. Eugênia, por sua vez, concluíra que seu grande amor por aquele homem compensava até uma possível renúncia à carreira de professora. Mas isto não foi necessário. Em pouco tempo ela teve suas aptidões valorizadas e tornou-se conhecida no cenário educacional da cidade onde passara a residir. 
    Apesar do grande amor que os unia Leopoldo e Eugênia tinham escassos momentos de entrega mútua. Precisavam construir a vida. Acatando exemplo de seus pais dedicavam-se com afinco à conquista da necessária independência financeira. Isto, evidentemente, não os privava da felicidade conjugal. Um sabia pertencer de corpo e alma ao outro. O casamento ocorrera menos de um ano depois de se conhecerem porque nenhuma dúvida existia sobre o desejo de uma convivência afetuosa e duradora.
    Eugênia costumava se olhar no espelho e confessar a si mesma a paixão que a unia àquele jovem médico. Com Leopoldo não era diferente. No trajeto do consultório à sua casa, depois de estafante dia de trabalho, meditava sobre a felicidade constante e permanente que se alojara em sua vida desde que conquistara lugar no coração da amada professora. Estavam, pode-se dizer, predestinados a viverem uma felicidade repartida. Só não sabiam - e nem queriam pensar sobre isso - até quando esse sentimento mágico resistiria. Ou melhor... Até quando eles viveriam para poder usufruir plenamente desse sentimento mágico.
    Um motivo a mais
    A maternidade, para Eugênia, era algo natural. Tanto que ela, de comum acordo com Leopoldo, deixou que o destino decidisse o momento certo de ter o primeiro filho. E esse momento certo não demorou. Ao descobrir a gravidez, seis meses depois do casamento, a apaixonada professorinha do interior achou que precisava repartir a alegria com pessoas do seu círculo de amizades. Por telefone fez o feliz anúncio para Lúcia, Aurélia, Guilherme... Leopoldo, transbordando de satisfação, também fez a comunicação para os mais próximos. 
    Os pais de Eugênia reuniram duas centenas de amigos para comemorar a novidade. Seriam avós. O neto viria mais cedo do que esperavam. Porém: a alegria que sentiam era um sinal de incontestável aprovação à chegada do bebê do casal Leopoldo/Eugênia. Os pais de Leopoldo, ainda um pouco relutantes, tiveram dúvida sobre a vinda tão rápida de um neto. Só que, face à alegria nos semblantes do casal, renderam-se à realidade. Isto é: passaram a também experimentar e vivenciar uma sensação de elevada felicidade. A comemoração ocorreu ao costume tradicional da família. Sem muita pompa. Entretanto: em requintado e vibrante estilo.
    Transformação interior
    O sentimento de mãe opera maravilhas. Bordado, crochê, tricô... Eugênia nunca imaginou que seria tão competente na arte de produzir roupinhas para o seu bebê. A vida tinha passado como um relâmpago e, mesmo diante da insistência de sua mãe, ela nunca aceitara receber orientação para essa arte. Estava impressionada que, após a descoberta da gravidez, tivesse tamanha habilidade. 
    Leopoldo, obrigatoriamente tomado por estudos e afazeres médicos, não se furtava a um tempo de admiração a sua amada. Sentado em um sofá, após o jantar, com livros e cadernos de anotação em mãos, baixava um pouco os óculos para, furtivamente, admirar a sublime figura de Eugênia a dedicar-se a bordado, crochê, tricô... E pensava: "Nunca imaginei ser possível amar tanto assim". O casal era o retrato da mais plena felicidade. 
    Dez meses depois do casamento - já dezembro - Leopoldo e Eugênia se deram ao luxo de umas pequenas férias. Entenderam correto dedicar esse tempo de folga aos amigos do vilarejo onde haviam se conhecido. Lá ainda moravam quase todos os amigos e, também, os pais de Eugênia. Assim fizeram... Leopoldo aproveitou o período para o sempre agradável contato com os cavalos da fazenda de sua avó. Ali ele tinha uma indescritível sensação de liberdade. Apreciava demais a intimidade com a terra. 
    Preocupante descoberta
    O suor e cansaço normalmente presentes nas faces de Leopoldo e Eugênia, em poucos dias de férias, se extinguiram. Os dois jovens usufruíam o máximo possível daquele momento de quase total descompromisso. Em lugar de suor e cansaço seus rostos exibiam a suavidade do descanso. Dormiam bem mais do que de costume. Respiravam um ar mais puro do que o da cidade grande. O contato com amigos e familiares lhes dava um sentimento de proteção. O que mais querer? Estava tudo perfeito. Pressa... Nem pensar... Isto é coisa para quando a gente voltar à rotina da metrópole. 
    Exatamente aí, nesse panorama de despreocupação, surgiu algo inesperado... Eugênia, com cinco meses de gravidez, teve a sensação de que seu organismo apresentava alguma anormalidade. De volta para a fazenda, depois do casamento de Guilherme e Lúcia, sentiu insegurança em relação ao ritmo da saudável gestação que almejava. Um sentimento de mãe... Um sentimento de que o bebê amado e ansiosamente esperado podia estar correndo algum perigo. E aquele coração de mãe não se enganava. 
    Um especialista médico, amigo que tinham no vilarejo, achou que a situação não recomendava cerimônia. Foi direto e correto... "Sua gravidez, lamento informar, deve ter um acompanhamento minucioso. Um zelo acima do costumeiro. O bebê e a senhora estão muito bem. Entretanto, sem os cuidados que recomento, a ocorrência de algum trauma não pode ser descartada". 
    Um jato de água fria nos ânimos do casal perfeito. A vida em comum havia transcorrido dentro da mais absoluta normalidade até ali. Contudo: estava se apresentando um fato que tinha de ser encarado. Felicidade... Amor... Carinho... Organização... Boa convivência... Tudo isso, com alguns ingredientes mais, não tinha sido o suficiente para impedir a mácula, pelo menos momentânea, da alegria sempre inabalável de Leopoldo e Eugênia. Agora forças físicas e fé espiritual tinham que se unir para encarar a situação inusitada. 
    Dificuldades superadas
    Ricardo, 3 quilos e 640 gramas, nasceu em uma ensolarada manhã de outono. Apesar das angustiantes expectativas o menino chegou saudável, faces rosadas e exibindo, inclusive, um tipo de alegria que só amor de pais (e outras pessoas da família) enxergam. "Ele está sorrindo para mim", disse Leopoldo. "Engano seu... O sorriso dele é para mim", contestou a avó Mariana. Os pais de Eugênia se mostraram mais ponderados. Sabiam que, por todos os procedimentos, seriam certamente amados pelo recém-nascido. Eugênia achava graça de tudo. As suas aflições tinham se dissipado. Estava ali, com plena saúde, o filho sonhado e desde o princípio amado.
    O nascimento de Ricardo aproximou as duas famílias - de Leopoldo e Eugênia - e aqueceu a felicidade conjugal que já tinha tamanho suficiente. Agora o casal tinha um tema a mais no contexto de amor que até ali haviam experimentado: companhia de um menino esperto, de olhos atenciosos, que certamente chegara para somar. Acrescentar o positivo na vida de um casal que só precisava disso como complemento. 
    Ricardo, menino ansiosamente esperado, seria o único filho de Leopoldo e Eugênia. Por recomendação de especialistas médicos uma nova gravidez seria por demais arriscada. O casal, então, resolveu que faria uma família unida de forma máxima para que a ausência de novos membros não representasse qualquer vestígio de frustração. Planos para o bebê recém-chegado eram traçados de comum acordo. Leopoldo e Eugênia, conhecidamente cautelosos e diplomáticos, sabiam que melhor era deixar o destino definir o rumo dos acontecimentos.  

    Observação da autora: Ricardo cresceria e se tornaria personalidade de relevância na sociedade. Profissional reconhecido e filho atencioso. Isto, para Eugênia, compensaria uma nova frustração que estava traçada para sua história de vida. Sobre isso falarei no próximo capítulo. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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