As artimanhas do coração - parte 4

    Francisco recolheu as mercadorias que se espalharam, pela ciclovia, após o pequeno acidente. Não conseguia desviar as atenções daquela senhora que, apesar de suas insistentes tentativas de iniciar um diálogo, permanecia em silêncio... 
    - Senhora... Como está se sentindo? Posso dar uma olhada no seu braço? - perguntou, com semblante preocupado, Francisco.
    - Por acaso o senhor é médico? - quis saber Eugênia, com certa rispidez, depois de sair da apatia em que se encontrava.
    - Não... Não sou médico madame. Mas acho que cinco filhos e oito netos me credenciam a verificar a gravidade de um ferimento. As crianças da minha família costumam ser muito ativas. Sobem em árvores, correm, pulam... E, inclusive, brigam. Pequenos acidentes fazem parte da nossa rotina - disse Francisco.
    - Peço que me desculpe. Falei sem pensar. Estava com a cabeça em outro lugar. Obrigada por recolher minhas compras - falou, com as faces rosadas, Eugênia.
    - Não precisa agradecer. Afinal: sou eu quem a atropelou. Agora posso dar uma olhada no seu braço? - insistiu Francisco.
    Eugênia, com certa relutância, ergueu a manga da blusa. Francisco, após uma rápida inspeção no ferimento, concluiu que gelo e analgésico seriam suficientes para aliviar a dor que vislumbrava nas feições da recém-atropelada.
    - Não há cortes. Na pior das hipóteses ficará com leves hematomas por alguns dias. Ah... Quanta falta de delicadeza... Meu nome é Francisco - revelou o ciclista.
    - Chamo-me Eugênia - contou a mulher, ao apertar a mão que lhe era estendida, acrescentando: A culpa pelo acidente é minha. Estava distraída. Tentei atravessar a ciclovia sem  olhar para os lados... Sem pensar nas consequências.
    - Apesar das circunstâncias é um prazer conhecê-la. Posso lhe oferecer um suco? Estava indo a uma padaria. O estabelecimento, a menos de uma quadra daqui, é conhecido pela variedade de doces e salgados de sabor irresistível. Um pouco de açúcar pode lhe fazer bem - comentou Francisco.
    Eugênia pensou em recusar. Não queria, contudo, voltar muito cedo à solidão de sua imensa casa. Fazia tempo que não se permitia um passeio. Achou que conversar com Francisco, um desconhecido que em nada lembrava sua rotina, poderia ser uma experiência agradável.
    - Disponho de tempo para um suco e, quem sabe, uma fatia de torta. Aceito o seu convite - confirmou Eugênia.
    - Antes, porém, vamos a uma farmácia. Você precisa tomar um analgésico - recomendou Francisco.
    - Carrego, na bolsa, uma cartela de analgésico. Se a dor persistir tomarei, com um pouco de suco, um comprimido - informou Eugênia.

    Trinta e cinco anos antes...
    Eugênia optou, após o nascimento de Ricardo, por deixar de lado, momentaneamente, o magistério. Leopoldo concordou, prontamente, com a decisão da amada.
    - Você tem meu apoio querida. Os cuidados, com a casa e o nosso filho recém-nascido, se aliados à vida atarefada de professora, poderiam lhe causar esgotamento. Estou em momento profissional maravilhoso. Não corremos o risco de enfrentar dificuldade financeira - garantiu Leopoldo.
    - Sabia que podia contar com sua compreensão. Volto à sala de aula depois que o Ricardo fizer dois anos - sentenciou Eugênia.
    - A decisão é sua. Tenha certeza, entretanto, que sempre estarei ao seu lado - assegurou Leopoldo.
    Eugênia acreditava que voltaria a lecionar. Os anos, no entanto, foram passando sem que o momento certo para isso chegasse. Os compromissos sociais, em razão da enorme ascensão profissional de Leopoldo, tornaram-se frequentes. O tempo livre era dedicado a Ricardo e, também, aos cuidados com a casa.
    Nos primeiros anos de casada Eugênia descobriu, sob influência da sogra Mariana, a paixão pelas flores. Se nos afazeres domésticos aceitava a ajuda de empregados no jardim não permitia interferências. Somente Mariana tinha autorização para auxiliar no plantio de flores e na poda de arbustos.
    Leopoldo apreciava a disposição de Eugênia na jardinagem. Costumava se sentar, embaixo de uma árvore, na companhia de Ricardo e muitos livros, para observar a amada em meio às coloridas flores.
    - Veja como a mamãe é bonita meu filho. Ela fica ainda mais bela quando está cercada pela natureza. A mamãe é a mulher mais linda do mundo. Papai não se cansa de admirá-la - confidenciava Leopoldo, ao pequeno Ricardo, em tardes ensolaradas de domingo.
    - Mamãe é a mais linda do mundo - repetia o pequeno, de braços abertos, correndo em direção a Eugênia.
    Grande família
    Leopoldo jamais esqueceu o desejo de Eugênia de ter uma família grande. Seus irmãos, Alberto e José, também já haviam encontrado as mulheres de suas vidas. Alberto, casado há pouco mais de três anos com Elvira, tinha dois filhos... José, o mais novo dos herdeiros de Osvaldo e Mariana, encontrou em Aurélia, amiga de infância de Eugênia, o verdadeiro amor. Era pai de duas meninas (gêmeas) e de um menino. A convivência entre todos os membros da família, no entanto, era dificultada pela distância. Alberto e José moravam em outro estado. Somente em festividades de final de ano havia condições para um amplo encontro familiar.
    Ricardo passava as férias escolares na fazenda dos avós maternos Antônio e Maria. Cresceu na companhia de Luiz e Eulália - filhos de Guilherme e Lúcia. E, assim como o pai, descobriu cedo a paixão pelos cavalos.
    Ricardo era um ano e meio mais velho que Luiz. Os dois meninos tornaram-se, desde o primeiro instante, inseparáveis. Já Eulália, três anos mais nova, desejava ser sempre incluída em brincadeiras e cavalgadas dos dois meninos. Teimosa como a bisavó, de quem herdou o nome, jamais se deixou intimidar pelas caretas que Ricardo e Luiz lhe direcionavam com a intenção de fazê-la voltar para casa. Entre caretas, birras, brincadeiras, cavalgadas e outras aventuras os três cresceram livres e em despreocupada felicidade.
    Leopoldo e Eugênia organizaram uma bela festa para comemorar o décimo aniversário de Ricardo. O quintal da casa onde moravam foi cuidadosamente ornamentado para receber amigos e familiares. A animação se estendeu por toda a tarde.
    - Estou tão feliz meu amor! O dia foi perfeito. Ricardo estava radiante. Aproveitou, sem descanso, a companhia de amigos e primos - comemorou Eugênia enquanto recolhia copos e pratos.
    - Verdade minha querida. Foi uma tarde mágica - concordou Leopoldo carregando, até a cozinha, caixas e potes.
    - Nosso menino é tão bonito. Acho que se tornará um homem ainda mais belo do que o pai - brincou Eugênia.
    - É claro que sim. E sabe o motivo? Ricardo puxou a mãe - retribuiu Leopoldo. Depois de beijar a testa de Eugênia continuou: Querida... Preciso lhe mostrar uns papéis que estão na biblioteca. Será que podemos deixar a louça para lavar mais tarde?
    O casal partiu, então, para a biblioteca. Leopoldo, com um sorriso arteiro, alcançou uma escritura para Eugênia.
    - Preste bastante atenção no conteúdo destes papeis. A senhora, minha amada, é a mais nova proprietária da casa 301 da Av. das Nações - revelou Leopoldo.
    - Não acredito!!! Você comprou a casa??? Esta casa é, agora, definitivamente nossa??? - vibrou Eugênia.
    - Sim. Depois de muita negociação consegui comprá-la. Os herdeiros estavam relutantes mas não resistiram ao meu charme - gabou-se Leopoldo.
    A comemoração se deu com um apaixonado beijo. Outros beijos seguiriam o primeiro. Leopoldo, porém, interrompeu o momento de carinho.
    - Se continuarmos assim não poderei lhe contar a outra novidade... Acabaremos no andar de cima - profetizou Leopoldo para em seguida colocar: Você, mulher da minha vida, me disse, certa vez, que desejava uma família numerosa. Quis o destino que só tivéssemos um filho. Busquei, então, uma forma de lhe oferecer, pelo menos em parte, a chance de compartilhar o amor que enche seu coração. Olhe as fotografias que estão em cima da mesa e me fale o que acha.
    Eugênia, após analisar as imagens, mostrou-se empolgada:
    - Que lugar lindo!!! O quintal é arborizado e bastante espaçoso. O imóvel, se não me engano, fica nas proximidades do hospital. Está pensando em abrir uma pousada?
    - Não meu amor. O ramo hoteleiro não faz meu estilo. Apresento-lhe o endereço onde funcionará uma instituição assistencial. Nesse prédio poderão se instalar, na companhia de um familiar, crianças que moram em outras cidades e precisam receber tratamento médico na capital. Conta com biblioteca, espaço de lazer, refeitório, dormitórios... Tudo foi pensado para garantir o bem-estar dos pequeninos. E, tenho certeza, você apreciará me auxiliar na administração - revelou Leopoldo.
    - Não acredito... Uma constante ação de caridade!!! É claro que vou ajudar. Farei tudo que estiver ao meu alcance para que as crianças se sintam bem acolhidas - confirmou Eugênia.
    Tempo que passa
    Os anos foram passando... O amor se fortificando... As crianças crescendo... Leopoldo e Eugênia já sentiam, fisicamente, as marcas do tempo. 
    Ricardo, jovem inteligente e muito bonito (parecidíssimo com o pai), foi morar na Inglaterra. Um amor, semelhante ao que no passado fizera Leopoldo permanecer no Brasil, levou o jovem para a Europa. Ele encontrou em Honória, uma arquiteta inglesa, a companheira ideal de trabalho mas, principalmente, de vida.
    Leopoldo já não trabalhava muito... Tinha, com esforço e dedicação, acumulado expressivo patrimônio. Passava boa parte do dia na instituição que abrigava crianças. Gostava de observar Eugênia lendo histórias para os pequeninos enfermos. "A minha professorinha fica imensamente feliz quando está cercada de crianças" - pensava Leopoldo.
    Uma ou duas noites por semana Leopoldo e Eugênia marcavam presença em jantares/bailes beneficentes. Nestes compromissos estavam sempre acompanhados de dois ou três casais de amigos (médicos e suas mulheres). Os finais de semana eram geralmente mais tranquilos. Leopoldo e Eugênia gostavam de ficar em casa... Enquanto Eugênia cuidava do jardim Leopoldo a admirava... Quando Leopoldo lia era Eugênia quem lhe direcionava olhares furtivos. O amor, o passar dos anos, só fazia aumentar.
    Leopoldo estava com cinquenta e oito anos... Eugênia com cinquenta e quatro... A vida, com todos os obstáculos e, também superações, era perfeita... Recheada de felicidade. Os dois completariam, em pouco tempo, trinta e cinco anos de vida conjugal. A comemoração já estava sendo preparada. A família estaria reunida. Mas o destino tinha outros planos. Em uma manhã chuvosa de primavera Leopoldo não acordou. Um infarto o levou para longe de Eugênia.
        Acontecimento jamais previsto. Chocante. Eugênia demorou horas para formar um raciocínio sobre o que havia acontecido. "Leopoldo morto... Meu Deus!!! O que será de mim??? Como Ricardo irá encarar a ausência definitiva do pai??? Meu Deus!!! O que será de nós???"
    A realidade, mesmo que extremamente desagradável e frustrante, estava ali. Eugênia, a partir daquele momento, precisava aprender a tocar a vida sem a companhia do amado Leopoldo. Os dias, antes tão coloridos, tornaram-se cinzas. O sorriso, que sempre iluminava o rosto de Eugenia, deu lugar a lágrimas. A sensação de pertencimento, que encontrava nos braços do marido, foi substituída pela saudade que apertava o peito. Somente o amor permanecia - e permaneceria - pelo resto dos dias no coração de Eugênia. 

Observação da autora: Grata pelas observações elogiosas que tenho recebido sinto-me com obrigação cada vez maior de disponibilizar uma leitura suave aos frequentadores do meu blog. Gosto de enfocar o amor na sua mais elevada expressão. "As artimanhas do coração" terá outros capítulos. Ainda não sei quantos. Talvez até uns três ou quatro. Peço que acompanhem esta história que terá gratificantes desdobramentos. Leopoldo morreu... Mas o amor continua no ar e nos caminhos de Eugênia. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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