As artimanhas do coração - parte 5

    Francisco e Eugênia trocaram poucas palavras durante o curto trajeto até a padaria. A bicicleta, responsável por fazer seus caminhos se cruzarem, ia empurrada por Francisco. Ele também carregava, sob protestos de Eugênia, as sacolas de compras recolhidas da ciclovia depois do pequeno acidente.
    - Meu braço direito está intacto. Deixe-me ajudá-lo - insistiu a mulher.
    - A senhora foi por mim atropelada. Faço questão de carregar suas compras - enfatizou, sem dar chance para discussão, Francisco.  
    Os dois fizeram uma parada em frente a um sobrado de pedra com aberturas de madeira. A fachada discreta tinha um pequeno letreiro: "La Boulangerie François". Somente os mais atentos descobriam que naquele acanhado sobrado, espremido entre dois imensos prédios, funcionava um estabelecimento comercial sobremaneira agradável.
    - Chegamos... A padaria é pequena mas movimentada. Pessoas de todas as partes da cidade costumam vir aqui fazer um lanche ou, simplesmente, comprar pães e outros artigos indispensáveis em casa - revelou Francisco.
    Eugênia, apesar de não demonstrar, estava encantada com a aconchegante padaria. Algumas poucas mesas e cadeiras, estilo vintage, dividiam espaço com balcões repletos de doces e salgados. Duas dezenas de clientes aguardavam atendimento. "Que lugar fascinante! Como pude morar todos esses anos na capital sem ao menos saber de sua existência?" - pensou Eugênia.
    - Boa tarde amigo Francisco. Achei que não apareceria hoje. Sua mesa, porém, ainda está desocupada - falou um jovem, sorridente, de feições bem agradáveis.
    - Boa tarde meu caro Felipe! Tive um pequeno contratempo. E sim... Antes que pergunte lhe respondo: hoje ficarei, na companhia da senhora Eugênia, para um lanche. Pode, contudo, deixar separada a quantidade de pães que costumo levar - informou Francisco.
    Eugênia seguiu Francisco até uma mesa que ficava no canto direito da padaria. Nem sabia explicar a si mesma porque fazia a vontade daquele homem que, até minutos atrás, era somente um desconhecido. Entretanto: a vista da janela constituía um espetáculo que poderia justificar a sua presença ali. Através da vidraça ela enxergava o rio de águas calmas que cortava a cidade. Também via, em meio aos arranha-céus tão característicos da capital, algumas construções centenárias. Ao fundo da paisagem era possível, ainda, vislumbrar as frondosas árvores do parque municipal.
    Francisco e Eugênia fizeram seus pedidos. A conversa, antes dificultada pelo nervosismo, começou a fluir com naturalidade...
    - Você parece ser um cliente assíduo - disse Eugênia.
    - Sim... Frequento este lugar há mais de quarenta anos. Aqui encontro, todos os dias, pães e outros produtos que me são solicitados pela família. Quando o movimento está calmo faço um lanche e converso com o Felipe - revelou Francisco. 
    - Nossa!!! Já eu... Bem... Eu nem sabia que esta padaria existia - informou, um pouco constrangida, Eugênia, completando: - Estou começando a achar que o tempo passou tão rapidamente que nem a minha cidade eu conheço direito.
    - Mantive uma próxima convivência com François, avô de Felipe, desde os vinte anos de idade. Ele já estava com mais de cinquenta. Era funcionário de "La Boulangerie". Eu adorava vir aqui na companhia da minha amada Elza. Com o passar do tempo François e eu ficamos amigos - contou Francisco. 
    Depois de alguns segundos de silêncio, percebendo o interesse de Eugênia, Francisco prosseguiu: - François comentou, em uma manhã chuvosa de inverno, que a padaria iria fechar. Sugeri, então, que a comprasse. Ele, contudo, se mostrava receoso. "Sou analfabeto. Mal consigo distinguir as letras do meu nome." Eu tinha certeza que sob os cuidados dele a padaria iria prosperar. François era a alma deste lugar. Comunicativo e atencioso sabia cativar as pessoas. Depois de uma série de argumentações consegui convencê-lo a investir no ponto que o tornara querido e respeitado pela população. E veja só... Acho que foi uma ideia iluminada. Hoje Felipe é quem administra, com extrema competência, este lugar.
    - Você então foi uma espécie de anjo da guarda do senhor François - deduziu Eugênia.
    - É aí que você se engana. François representou, em minha vida, muito mais do que você possa imaginar. Depois que minha Elza se foi ele passou o tempo que pôde, nesta mesma mesa, me ouvindo e transmitindo conselhos. Era uma pessoa que se preocupava com os seus semelhantes. Somente na sua presença eu tinha coragem de deixar as lágrimas caírem. François foi o pai que eu não tive. Esteve ao meu lado nos momentos mais difíceis - enfatizou Francisco.
    - Então você também é viúvo. E como superou? Como conseguiu seguir em frente? Eu preciso saber... Por favor me fale - pediu Eugênia com os olhos marejados.
    - Não tive opção. Elza partiu rapidamente. Foi acometida por uma grave doença. Eu fiquei, de uma hora para outra, sem o meu porto-seguro... Sem a minha amada. Só que precisava seguir em frente. Eu tinha cinco crianças para criar. Nossos pequeninos necessitavam de alguém que os ajudasse a superar a perda da mãe... De alguém que os guiasse. O que seria deles se eu sucumbisse à tristeza? O que fariam se eu optasse por me desesperar? Estariam perdidos!!! Já bastava a falta que sentiam - e ainda sentem - da mãe. O pai não poderia deixá-los desamparados - finalizou Francisco.
    Eugênia, com lágrimas nos olhos, começou então a fazer um relato de sua vida com Leopoldo. Falou, inclusive, dos meses posteriores à morte de seu amado... Francisco, tomado por imensa ternura, mostrou-se um perfeito ouvinte. Gentil, alcançava, quando julgava necessário, um guardanapo para Eugenia enxugar as lágrimas...

    Alguns meses antes
    Eugênia estava devastada. Somente a presença de Ricardo, que chegaria nas próximas horas, seria capaz de lhe proporcionar algum conforto. As pessoas se aproximavam... Ofereciam-lhe condolências... Eugênia, todavia, não tinha forças para sair da apatia em que se encontrava. Os olhos, sem brilho, estavam fixos em Leopoldo. Ficou, todo tempo, ao lado do seu amado. "Meus Deus!!! O que será da minha vida sem você Leopoldo?" - lamentava-se, em pensamento, Eugênia.
    Ao saber da notícia da morte do pai Ricardo buscou, desesperadamente, passagens aéreas para o Brasil. Embarcou, depois de muita persistência, em avião que faria algumas escalas. Tinha medo de não chegar ao Brasil em tempo de se despedir do pai. Honória e as crianças só conseguiram passagens para o dia seguinte.
    Ricardo desembarcou, no aeroporto da capital, no meio da tarde. Estava muito abatido. Destacavam-se, na face, profundas olheiras. O sofrimento era visível. Guilherme, amigo fiel desde a infância, estava a sua espera.
    - Obrigado por vir me buscar. Como está minha mãe? - questionou, ao receber um confortante abraço, Ricardo.
    - Dona Eugênia está arrasada... Minha mãe contou que ela se recusa a comer... Não quer sair de perto do seu pai - informou Guilherme.
    Quando Eugênia sentiu a aproximação de Ricardo ergueu os olhos. Por um instante achou que estava sonhando. Enxergava, em Ricardo, o jovem Leopoldo. A semelhança entre pai e filho era cada vez mais evidente. Ricardo, com lágrimas nos olhos, acolheu, em seus braços, a desolada mãe Eugênia. O encontro entre mãe e filho foi sobremaneira emocionante. Abraçados Ricardo e Eugênia se despediram de Leopoldo no sepultamento. 
    Ricardo falou sobre a bondade do pai... Sobre o amor que foi alicerce de sua família. "Aprendi, com meus pais, a importância de oferecer amor... Se hoje sou feliz e realizado devo isso aos ensinamentos que deles recebi desde pequenino. Com o coração partido me despeço deste grande homem. Leopoldo!!! Meu pai... Você é o expoente da minha vida. Que Deus me permita trilhar trajetória parecida com a sua. Assim terei certeza de que fiz alguma diferença para o mundo. Agradeço pela oportunidade de ser seu filho. Conforta-me acreditar que algum dia estaremos juntos novamente" - exclamou, entre lágrimas, Ricardo.
    Figura inesquecível
    A chegada de Honória, Catherine (6 anos) e Alexander (3 anos) fez com que Eugênia se sentisse um pouco melhor. Os netos sempre foram, para ela, motivo de alegria. Eugênia, apesar da tristeza e do visível abatimento, reunia forças para passear e brincar com aquelas doces crianças.
    - Papai disse que o vovô está morando no céu - contou, em um final de tarde, Catherine.
    - É meu amor... O vovô está no céu. De lá ele tem zelado por todos nós - confirmou, abraçando a neta, Eugênia.
    - Papai falou que o vovô achava a senhora a mulher mais bonita do mundo. Papai também acha a senhora a mulher mais bonita do mundo. Mas não conte isso para a mamãe. Acho que ela vai ficar triste - pediu Catherine antes de sair, rapidamente, para socorrer Alexander que havia tropeçado e caído em um canteiro de flores.
   - Como a senhora está minha mãe? - quis saber Ricardo.
    - Acho que esta ferida, que carregarei no coração até o final dos meus dias, vai demorar a cicatrizar. Sinto tanta falta do seu pai que chega doer. A presença de vocês nesta casa me traz um pouco de conforto - respondeu Eugênia.
    - É sobre isso que gostaria de conversar com a senhora... Falei com Honória... Ela concorda. Estamos pensando em fixar residência no Brasil. Não podemos deixá-la sozinha neste momento - confidenciou Ricardo.
    - Meu amado filho... A intenção de vocês me enche de alegria. Não posso, mesmo assim, permitir que abandonem a vida na Inglaterra. Os negócios estão indo bem... As crianças têm amigos e parentes na Europa - argumentou Eugênia.
    - Então peço que more conosco na Inglaterra. A casa é grande. A senhora vai se sentir confortável. Terá a companhia dos netos. Tenho receio de deixá-la sozinha aqui no Brasil. A violência está crescendo em níveis assustadores. Eulália vem administrado com notável competência a instituição idealizada por meu pai. Guilherme costuma elogiá-la, com frequência, em nossas conversas. Ele tem orgulho da mulher que a irmã se torou - destacou Ricardo.
    - Eu, querido filho, considero-me a mãe mais compensada deste mundo. Não poderia desejar filho melhor... Família melhor... Sua preocupação me envaidece. Terei, apesar de tudo, que recusar seu convite. Minha vida é no Brasil - assim como a sua, tenho certeza, é na Inglaterra. Não posso abandonar esta casa... Não posso abandonar a instituição tão competentemente mantida por Leopoldo... Mas, principalmente, não posso abandonar o seu pai - ponderou Eugênia deixando transparecer um compromisso afetivo indestrutível em relação ao marido recém-falecido. 
    De comum acordo Eugênia e o filho Ricardo decidiram o que fazer dali para a frente. Por intuição concluíram não ser necessário promover grandes mudanças em suas vidas... Pelo menos naquele momento. "Minha querida mãe... Você está certa. Vamos nos manter em sintonia. Não somos uma família muito numerosa... É importante que unamos nossas forças para a superação deste momento. O que virá depois é certo que será compensador. Papai, do lugar onde esteja, zelará pelas nossas atitudes."
    Ricardo e sua família retornaram à Inglaterra e Eugênia, do melhor jeito possível, procurou tocar sua vida no Brasil. Francisco, embora ela não saiba, é a âncora que lhe foi alcançada para a superação do que aparentemente se mostra insuportável. Eugênia, com o gentil artesão, tem tudo para viver um amor tão ou mais empolgante do que aquele experimentado na convivência com o médico Leopoldo. 
    Eugênia só precisa concluir que amar de novo não é pecado... Que outra terna companhia talvez seja até uma celestial compensação à pureza de suas atitudes como cidadã... Suas atitudes como mulher... Suas atitudes como mãe... Suas atitudes como profissional que adotou o amor e a constituição de família como prioridade de vida.
   Real afinidade
    Resistente a todo tipo de relação que pudesse macular o que caracterizara sua vida, antes de ficar viúva, a recatada Eugênia, mãe e avó, não sabia que o pequeno acidente com o ciclista Francisco era o descortino para um relacionamento igual ou melhor que o experimentado anos a fio com Leopoldo. Você, caro leitor, está para tomar conhecimento de um dos mais empolgantes relacionamentos homem/mulher que se pode imaginar. A professora e o artesão, mesmo em matura idade, viverão o máximo de felicidade que a vida em comum pode permitir. Aguarde os próximos capítulos. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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