As artimanhas do coração - parte 7

    Eugênia estava num dilema... Não sabia se seria correto sair a procura do artesão Francisco. Tinha certeza de que pelo menos mais alguns minutos de conversa com ele eram necessários. Só não vislumbrava a forma certa de encontrá-lo. Às vezes concluía que esperar era o ideal. Mas persistia um raciocínio de que era seu dever ir ao encontro daquele homem que praticamente ignorara no primeiro contato.
    Experiente mulher, de repente, Eugênia se sentiu uma adolescente a espera do menino bem-alinhado que frequenta a sua escola. Não confessava nem a si mesma... Estava, porém, diante de uma persistente vontade de rever o já maduro ciclista que a atropelara na ciclovia. "Sinto um irresistível impulso de reencontrá-lo. Temo, entretanto, ser mal interpretada. Temo parecer infantil. Aliás: estarei sendo infantil? Dane-se!!! Eu quero ter mais um bom tempo de conversa com aquele homem."
    Em tempo de compromissos
    O artesão Francisco estava atravessando um período de intensa ocupação. A projeção que a imprensa lhe dera apontava como resultado um inesperado volume de convites e pedidos (de obras artesanais). Ele não estava acostumado com isso. Seu ritmo de trabalho, antes da fama, era bem modesto. Trabalhava quando era obrigado pela inspiração. Agora trabalhava sob a pressão das encomendas. Isto, para um artista, é bem pouco agradável. 
    "Estou me transformando em um operário do artesanato. O público não tem culpa disso. Gosta do que faço e quer ver seus pedidos atendidos no mais curto espaço de tempo possível. Tenho, no entanto, que equilibrar os meus procedimentos. A qualidade de vida deve ficar acima da fama e, inclusive, da geração de riqueza. Tenho a impressão de que a fama está fazendo eu esquecer um pouco de mim."
    Havia em Francisco um sentimento de plena realização profissional. Ele se considerava privilegiado pelas manifestações de afeto que emanavam das pessoas. "Parece que me tornei um ídolo. Nunca ambicionei tanto. Espero que essa agitação incontestavelmente positiva não venha a se tornar um entrave na trajetória que imaginei para minha vida. No momento, além da energia que invisto na produção artesanal obrigatória, sou inquietado por uma teimosa lembrança... Por que não consigo tirar da minha cabeça a imagem daquela mulher que vitimei na ciclovia?"
    Eugênia e Francisco experimentavam idênticas sensações. Era como se existisse um imã entre eles. Um reencontro se tornara obrigatório. O universo isso exigia. O universo, então, não podia ser contrariado. Eugênia partiria em busca de Francisco... Francisco partiria em busca de Eugênia. 
    Inevitável expectativa
    Eugênia, naquela terça-feira de inverno, saiu da cama bem animada. Tomou o costumeiro banho do amanhecer ("para acertar os cabelos") e passou a enfeitar-se. O casaco de lã amarelo era indispensável. Comprara até uma bicicleta para ter o direito de circular nos caminhos normalmente adotados pelo seu "perseguido". O batom vermelho aperfeiçoou a maquilagem de costume. Estava tudo no lugar. Podia ir ao encontro da expectativa.
    Francisco, naquela terça-feira de inverno, viu o amanhecer chegar sem um minuto de repouso. Passara a noite produzindo o que o público lhe exigia por encomenda. Havia, contudo, algo diferente nas suas sensações mais íntimas. "Esta terça-feira não é como as outras. Percebo que terei um dia sui generis. Algo inédito está para me mover ou me acontecer."
    É... O dia escolhido por Eugênia e Francisco para o início da busca do reencontro foi uma terça-feira. Coincidentemente os dois tiveram esse impulso na mesma terça-feira fria de inverno. Não mediriam esforço até que um sonhado abraço acontecesse. 
    Perfeitas as sensações de Eugênia e Francisco. Ambos haviam concluído já ter chegado a hora de melhor se conhecerem. E a terça-feira era por demais inspiradora... Eugênia, de bicicleta, circulou algumas horas na pista normalmente utilizada pelos adeptos do ciclismo. Francisco, por sua vez, optou por ir em busca da entidade assistencial que lhe fora indicada, na primeira conversa, pela encantadora mulher. Eugênia, este era o nome a ser procurado, sem poupança de esforço. Talvez o coração lhe ditasse isso, no momento, como um único objetivo. Omitira o nome dessa preciosa pessoa em todas as manifestações públicas até aquele momento. Isto com propósito de preservação. Agora encontrá-la e tê-la nos braços era uma questão vital.
    Infrutíferos os esforços ciclísticos de Eugênia. Francisco naquele dia certamente não retirara a bicicleta do depósito. Já Francisco, muito mais convicto, também viu ruir as suas esperanças ao visitar a instituição assistencial e não poder ver, lá, a mulher foco da sua obstinação.
    "Devo evitar este tipo de precipitação. Não fica bem para uma pessoa como eu aparecer por aí a procura de um homem que me é praticamente desconhecido." Esta a conclusão de Eugênia. Conclusão de Francisco: "Só eu mesmo para imaginar que uma deusa daquelas pudesse ser vista com facilidade. É melhor me conformar. Um novo encontro é contemplação praticamente impossível."
    Malvadeza do destino
    Eugênia, com a estafa de muitos quilômetros na ciclovia, resignou-se com o pensamento de que, depois de Leopoldo não mais tinha direito de querer outro relacionamento íntimo. "Tivemos um amor pleno. É impossível algo semelhante. É melhor me conformar com esta solidão acompanhada de boas lembranças do passado."
    Francisco, mais obstinado, decidiu que ficaria a vida toda, se preciso, a procura da mulher encantadora ferida pelos pneus da sua maldosa bicicleta. Passou, então, a fazer um verdadeiro plantão nos ambientes onde ela poderia estar. Pesquisou endereços residenciais... Relacionou contatos pessoais... Fez indagações a pessoas que seriam próximas a Eugênia... Não mediu esforços nessa busca. Era um objetivo de vida... "Sem mais um diálogo com essa mulher eu ficarei travado. É algo que vai muito além das minhas forças físicas e mentais. É algo vital. Imprescindível. Eu acho que Eugênia, a minha vítima da ciclovia, é o grande amor que tenho a viver."
    Não faltava vontade de um reencontro. Nem para Eugênia... Nem para Francisco. Ocorre que os dois tinham que tocar suas vidas independentemente dos sentimentos. Eugênia, na entidade assistencial, recebeu a inesperada visita de Guilherme, amigo de juventude e primo do falecido marido Leopoldo. Também pai de Eulália - administradora da instituição. Ele viera, na condição de amigo incondicional, verificar como estava a sua realidade depois do trauma da perda do marido. Era a materialização da verdadeira amizade. Guilherme considerava esse gesto de elevada importância. 
    Esse procedimento altruístico de Guilherme, infelizmente, acabou protelando um novo encontro de Eugênia com Francisco. Depois de semanas de coleta de dados e informações o artesão estava certo de que encontraria a mulher que tanto o fascinara. E a encontrou... A encontrou passeando nos jardins da entidade assistencial que dirigia. Havia, por ironia do destino, um fator a mais de inquietação. Guilherme estava ao lado de Eugênia, nos jardins da instituição, com uma mão no seu ombro, inspirando intimidade. 
    Francisco, desconhecendo totalmente a relação de Eugênia com Guilherme, pensou estar sonhando com um amor impossível. "Só eu mesmo para imaginar que uma pessoa tão preciosa quanto essa pudesse estar a espera de mim. Nossa!!! É chocante!!! O que faço agora destes meus sentimentos??? Tive a ingênua esperança de ser amado como amo... E essa mão no ombro... O que realmente significa?"
    Encarando a realidade
    Francisco entendeu que a alimentação da dúvida seria nociva à vida saudável e equilibrada que sempre desejara. Chegou, por isso, à conclusão de que mesmo que mal-interpretado teria que buscar uma aproximação, o mais rapidamente possível, com Eugênia. 
    Eugênia, já com músculos nas pernas de tanto pedalar na ciclovia, também se mostrava irresignada. Dispensaria qualquer tipo de vaidade para um reencontro com Francisco. Estavam, portanto, os dois pensando em uma só direção. Só faltava o tão precioso contato pessoal. 
    Esse equilíbrio de pensamento teve um efeito mágico... No dia seguinte, às 14h12min, os dois entraram na padaria que testemunhara o primeiro encontro. Olharam-se fixamente e daí surgiu o impulso irresistível de um forte abraço. Eugênia teve a impressão de que, ao pé do ouvido, lhe foi dito "Eu te amo". Francisco teve a certeza de que, ao pé do ouvido, lhe foi dito "Nossa!!! Finalmente estou contigo".
    Depois desse abraço, cujo calor perdurou por muitas horas misturado com agradável perfume, nem Eugênia e nem Francisco mais precisaram duvidar de quão generoso lhes era o destino. Tinham o direito e o dever de viverem um amor muito intenso. Um "amor" que refletisse o mais legítimo significado da expressão. Dali para a frente só o amor nortearia as suas caminhadas. Precisavam, os dois, em consequência, sincronizar perfeitamente  essas caminhadas. 
    Francisco tinha, na semana seguinte, uma exposição em Dubai. Considerava vital que Eugênia o acompanhasse. "Que valor tem todo esse sucesso se não há o seu testemunho? É indispensável tê-la ao meu lado. Com você essa exposição pode significar o meu verdadeiro nascimento. O meu nascimento para a arte. Sem você isso terá um sentido secundário."
    Eugênia agradeceu aos céus por não ter outra saída. Fugia da sua linha de recato para caminhar sob a inspiração de sentimento que jamais experimentara. Um sentimento de amor misturado com veneração. Não que sua vida com Leopoldo tenha merecido menor valor. Esta nova emoção, é importante explicar, era diferente... Não surgira por necessidade de amparo ou autoafirmação. Significava o amor que Eugênia considerava indispensável para a plena existência. 
    Francisco não representava a extinção de tempos já vividos. Francisco representava, isto sim, promessa de maravilhosos tempos a serem vividos. A viagem a Dubai ocorreu e foi muito mais preciosa do que os dois haviam imaginado. Mas sobre isto falaremos em um próximo capítulo. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

Comentários

Postagens mais visitadas